segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A difícil arte de amar

"A Difícil Arte de Amar"

A Limitação do Conhecimento entre o Homem e a Mulher

Uma Interpretação da Psicologia Simbólica Junguiana

Heidegger nos ensina que, para pensar ontologicamente, o ser humano necessita tematizar os problemas. A tematização da identidade do homem e da mulher é uma ocupação que se perde na origem dos tempos, mas o aprofundamento do seu estudo faz parte de várias ciências humanas na modernidade. Continuando esse estudo, quero aqui enfatizar que, apesar de muitos acharem esse tema resolvido com o rótulo simplório “homens são de Marte e mulheres são de Vênus”, ele é muito mais complexo do que aparenta e está ainda no seu início. Sua importância é devida à polaridade biológica e emocional homem-mulher ser das mais importantes na vida da espécie e ao fato de elaestar muito deformada e em grande parte fixada na Sombra.

Da mesma forma que muitos de nós ainda acreditamos na imobilidade da Terra e, por isso, temos dificuldade em imaginar a descoberta heliocêntrica de Copérnico, também achamos que sabemos como é o homem e a mulher, porque, afinal... já nos conhecemos há bem mais de cem mil anos, não é?

A Formação da Identidade e da Sombra

A identidade das coisas na Consciência não se forma diretamente pelas vivências. A identidade se cria e se organiza com a formação da polaridade Ego e não-Ego, ou seja, da polaridade Ego-Outro. Vou descobrindo quem eu sou, junto com a descoberta de quem eu não sou. A identidade do Ego e do Outro emerge da indiferenciação psíquica original pela elaboração dos símbolos e das funções estruturantes coordenada pelos arquétipos a partir das vivências.

A elaboração simbólica começa com a atenção do Self focada em um símbolo que está na posição indiferenciada do Arquétipo Central. Ela continua pela coordenação do Arquétipo Matriarcal por meio da posição insular e, posteriormente, pelo Arquétipo Patriarcal, com sua posição polarizada, a qual é seguida pela coordenação do Arquétipo da Alteridade por meio da posição dialética (Byington, 2008).

A elaboração simbólica tem início na posição insular matriarcal por intermédio da função estruturante da imitação, que pode ser sintônica (semelhante) ou distônica (reativa), e se aperfeiçoa, na posição polarizada patriarcal, por tantas repetições quanto forem necessárias das funções estruturantes da introjeção e da projeção. A elaboração na posição dialética da alteridade continua a ser feita pelas repetições seguidas das funções estruturantes da introjeção e da projeção, que vão, paulatinamente, aperfeiçoando a identidade do Ego e do não-Ego, ou seja, do Outro.

De acordo com a Psicologia Simbólica Junguiana, o Arquétipo Matriarcal, da sensualidade, e o Arquétipo Patriarcal, da organização, englobam o masculino e o feminino, ou seja, estão presentes na psique tanto do homem quanto da mulher. Ao considerar o matriarcal igual ao feminino, e o patriarcal igual ao masculino, a cultura em geral e a psicologia em particular projetaram defensiva e redutivamente no masculino e no feminino os papéis históricos vivenciados pelo homem e pela mulher durante os mais de 10.000 anos de dominância patriarcal.

Quando ocorre um distúrbio da elaboração simbólica, a polaridade Ego-Outro fica deformada. Suas características não se diferenciam corretamente e a identidade dos dois fica misturada e comprometida. O distúrbio da elaboração é a principal origem da fixação que forma a Sombra, ou seja, o pecado, o crime, o mal e toda a psicopatologia (Byington, 2008).

Devido à sua complexidade e às circunstâncias da vida, a elaboração da identidade e da relação homem-mulher foi se deformando com o tempo e passou a apresentar fixações e defesas tanto na dimensão matriarcal quanto na patriarcal e, também, na alteridade, que inclui os Arquétipos da Anima e do Animus.

Pelo fato de a elaboração simbólica somente realizar o seu potencial pleno dentro da posição dialética de alteridade, é de fundamental importância elaborar as fixações da relação homem-mulher na dimensão matriarcal, depois na dimensão patriarcal e, finalmente, na própria dimensão de alteridade. Precisamos compreender, então, que a função estruturante do amor só pode ser profundamente elaborada e vivenciada quando o homem e a mulher se tornam capazes de se conhecer ao exercerem plenamente a posição dialética, que inclui os Arquétipos da Alteridade, da Anima e do Animus. Essa elaboração é inseparável da liberdade, da consideração mútua e dos direitos iguais para o desenvolvimento do homem e da mulher como companheiros no processo de individuação de cada um.

As Principais Disfunções da Polaridade Homem-Mulher na Dimensão Insular Matriarcal

O assentamento dos povos deu origem à formação das aldeias, das vilas e das cidades-reino. Uma vez garantida a alimentação com a introdução da silagem, o convívio social das pessoas necessitava agora ser organizado. A partir daí, o Arquétipo Patriarcal, que é o arquétipo da organização, foi intensamente ativado e propiciou a organização da povoação do Planeta.

Os mitos são os sonhos do Self Cultural, oriundos da atuação da função estruturante da imaginação (função transcendente, de Jung) sobre fatos históricos, circunstâncias ambientais ou sobre ideias e emoções individuais ou coletivas. Eles desempenham funções estruturantes importantes para a formação da identidade individual e cultural.

Durante a dominância matriarcal da pré-história predominaram os mitos de fertilidade, nos quais grandes deusas e deuses propiciam as forças da natureza. As religiões panteístas bem expressaram o culto das divindades como forças criadoras da fertilidade da natureza. No entanto, a identificação dessas forças exclusivamente com as grandes mães foi um redutivismo do Arquétipo Matriarcal ao feminino, como já mencionei.

Na realidade, os grandes deuses também expressam a criatividade da fertilidade.Dentro da dominância patriarcal, o mito da Gênese na mitologia judaico-cristã descreve o nascimento de Eva a partir de uma costela de Adão e, assim, deforma matriarcalmente a relação homem-mulher nessa importante raiz mitológica da Cultura Ocidental. Essa deformação matriarcal serve de base para uma deformação patriarcal da relação de poder, segundo a qual a mulher deve obedecer ao homem.

A organização social patriarcal deu uma forma à sociedade, que influenciou todas as suas dimensões, a começar pela propriedade privada, pelas classes sociais e pela família, em torno das quais se formularam a moral (superego) e as leis para aplicá-la.

Como todas as polaridades do Self Cultural, a relação homem-mulher também foi intensamente coordenada pela organização patriarcal. Apesar da mudança do paradigma sensual matriarcal para a organização patriarcal, a lei do mais forte continuou a ser a diretriz maior da elaboração simbólica. Os governantes foram privilegiados com o poder diante do povo, os nobres diante dos servos e, posteriormente, o proprietário diante do operário, o latifundiário diante do trabalhador do campo, os pais diante dos filhos, o professor diante dos alunos, o ser humano diante da flora e da fauna, e assim por diante. A polaridade homem-mulher sofreu a mesma deformação que a organização da família e da sociedade.

O trabalho no lar, dividido entre a função procriadora e doméstica, foi atribuído à mulher, enquanto as funções religiosa, militar, jurídica e operacional social foram atribuídas ao homem. As funções do homem foram claramente privilegiadas pelo “pátrio poder”. As consequências desse arbítrio na civilização marcaram a ferro e fogo, pela polaridade opressor-oprimido, a identidade histórica do homem e da mulher. Apesar da grande diferença que observamos entre esses papéis sociais nas diferentes culturas, o denominador comum arquetípico da polarização patriarcal na organização social, baseada na lei do mais forte, nos permite perceber uma desigualdade inegável, que tem impedidoa realização emocional e existencial do homem e da mulher como indivíduos e como casal. Não importa, para esse impedimento, se o homem é o repressor e a mulher a reprimida, pois ambos tiveram importantes aspectos da sua identidade deformados e fixados na Sombra, os quais limitam muito, até hoje, sua realização, o seu conhecimento mútuo e a busca do amor.

A manutenção dessa desigualdade por meio do poder tem sido uma das características da organização patriarcal. Uma de suas formas foi o controle da sensualidade da mulher pela mutilação dos seus órgãos sexuais externos, que pode incluir a extirpação dos grandes lábios vaginais e a cliterotomia.

Existem hoje, na África, por volta de 130 milhões de mulheres genitalmente mutiladas (BBC Brasil, 2014). Geralmente, essa mutilação é feita em meninas, ainda inconscientes da sexualidade, pelas velhas parteiras do grupo, elas próprias já mutiladas na sua infância. Em certas sociedades, porém, as próprias moças pedem para ser mutiladas, pois o fato de não o serem significa que gostam de sexo e, por isso, devem ser preteridas para casar, pois não podem ser “moças de família”

O Sadomasoquismo na Relação Homem-Mulher

Ao ampliar a visão sobre a sexualidade utilizando o conceito de função estruturante arquetípica, a Psicologia Simbólica Junguiana pode percebê-la como uma função estruturante da Consciência, junto com a função estruturante do poder. Dessa maneira, a relação sadomasoquista pode ser vista, além de uma perversão sexual (Krafft 1893), como um distúrbio da relação de poder, como é o caso do favorecimento da automutilação das pretendentes ao casamento em algumas tribos africanas.

É dentro dessa mentalidade de repressão da sensualidade da mulher na família patriarcal que vemos sociedades islâmicas, nas quais milhões de mulheres só podem mostrar sua face para os seus maridos dentro de casa. Nesse contexto, floresce a repressão não só à sensualidade da mulher, como também ao seu desenvolvimento intelectual. Tornou-se emblemático o caso de ácido jogado no rosto de meninas indo para a escola, coroado pelo tiro dado na cabeça da menina Malala, pelo fato de ela defender o crescimento da escolaridade feminina no Paquistão (O Globo, 2013). A serviço da repressão da mulher está até mesmo o estupro recomendado por lei tribal.

Recentemente, na Índia, uma jovem foi estuprada por 12 homens por ter sido vista namorando um rapaz de outra comunidade (Folha de São Paulo, 2014). Dentro dessas barbaridades que nos causam horror e que são praticadas em muitas culturas há milênios, mas que pouco se conhecia e hoje, com a internet, ficamossabendo dia a dia, devemos reconhecer também as consequências da dominância patriarcal nas sociedades ocidentais consideradas “evoluídas” e nas quais achamos que os homens e as mulheres têm direitos iguais e que, se não se amam, é porque não querem.

A descoberta de Freud (1905) da sexualidade infantil foi um choque para o puritanismo da cultura ocidental. No entanto, mesmo dentro da almejada isenção científica, a Psicologia não se liberou da misoginia patriarcal. Assim é que Freud, junto com a descoberta da sexualidade infantil, descreveu a reação da menina quando percebe que não tem pênis, atribuindo a ela um complexo de castração e a inveja do pênis. Um exemplo significativo de sadomasoquismo, dentro da teoria psicológica, parece-me ser professoras de Psicologia ensinarem essa interpretação psicanalítica como verdadeira.

Outro exemplo da interpretação patriarcal defensiva atribuída pela Psicanálise ao desenvolvimento da sexualidade infantil foi a fase de latência descrita da infância até apuberdade. Ora, o menino não tem essa fase porque sua sexualidade é desde sempreestimulada como incentivo à sua masculinidade. Quem apresenta a fase de latência da sexualidade é a menina, mas não por ser ela natural, e sim por ter sua sexualidade reprimida. Desta maneira, a própria descoberta da sexualidade infantil feminina deumargem a mais uma oportunidade para a organização patriarcal da Consciência inferiorizar a mulher.

O Quatérnio Primário e a Formação da Polaridade Ego-Outro

Outra consequência da deformação da identidade masculina e feminina pela teoria do desenvolvimento psicológico foi a redução da relação primária à díada criança-mãe, com a exclusão do pai. Essa redução e deformação da relação primária coincide com os papéis familiares redutivos históricos estabelecidos para o homem e a mulher na tradição milenar da família formada pela organização patriarcal. No entanto, essa redução e deformação desaparecem quando percebemos as relações da criança com os pais e a formação da sua identidade Ego-Outro pelo quatérnio primário.

Nesta relação quaternária, o Complexo Materno (Mãe e cuidadoras) se relaciona com o Complexo Paterno (pai e cuidadores), estabelecendo um vínculo interparental vivenciado pela criança com base em suas próprias características (Byington, 2008).

Pelo fato de a identidade se formar pela relação entre esses quatro pilares, devemos perceber o resultado desta interação pela sincronicidade e não pela causalidade. Quando interpretamos essa relação pela causalidade, atribuindo a autoria de um sintoma a um outro componente do quatérnio, caímos forçosamente no redutivismo e na deformação. Foi o que a Psicanálise fez maciçamente ao responsabilizar a criança pelo Complexo de Édipo.

Precisamos sempre elaborar cada um dos pilares do quatérnio primário para compreender a formação de qualquer característica da identidade. Quando assim fazemos com as reações de Laio, Jocasta e de Édipo, temos uma noção muito mais abrangente da formação deste complexo, de sua fixação e do grau de sua patologia. Ao elaborar, dentro da sincronicidade, a família dos Labdácidas, que gerou Laio, vemos que o Complexo de Édipo é tudo, menos normal e de responsabilidade exclusiva de Édipo. Isso evita a redução da normalidade à patologia na formação da identidade e a responsabilização da criança pela patologia familiar

A Diferença entre a Constituição do Homem e da Mulher

Outra deformação da relação homem-mulher que limita sua compreensão mútua e sua relação amorosa é a sua diferença constitucional. Ela precisa ser levada em conta na formação da identidade deles e na influência que tem no seu relacionamento. O homem e a mulher são geneticamente muito diferentes pelo fato de o genoma da mulher possuir os cromossomos XX e o do homem, XY. Essas características geraram um sem número de diferenças simbólicas, mas essas características não são causalmente determinantes de nenhum aspecto das suas identidades. No entanto, elas precisam ser levadas em conta quando buscamos compreender a identidade e a dinâmica simbólica da sua formação.

Junto com a força física, temos outra grande diferença entre o homem e a mulher, centrada na função da gestação. Quando analisamos sumarissimamente o funcionamento do organismo da mulher, nos damos conta que ele é radicalmente diferente do organismo do homem. Desde a puberdade dela até a menopausa, ou seja, aproximadamente dos 12 aos 50 anos, ela vive ciclos de 28 dias, organizados em função da possibilidade da fecundação e da gestação. Em cada ciclo menstrual, os ovários geralmente produzem 1 óvulo, que poderá ser fecundado em uma das Trompas de Falópio, na descida para o útero. A ovulação está ligada à interação da hipófise com o ovário para desenvolver cada um dos óvulos do reservatório ovariano. Quando ocorre a fecundação, a menstruação se interrompe e os hormônios femininos preparam a gestação, o parto e o aleitamento. Quando a fecundação não ocorre, recomeçam as menstruações e os preparativos para a possibilidade de uma fecundação, duas semanas depois. Cada ciclo menstrual afeta cada mulher de uma forma ou de outra e as variações dele são comparáveis às quatro fases da Lua.

O organismo do homem é endocrinologicamente radicalmente diferente em função da relação com a fecundação, a gestação e o aleitamento. À produção unitária da mulher para cada ciclo menstrual, compara-se a produção de 300 milhões de espermatozoides por dia e a 600 milhões deles em cada ejaculação. Enquanto cada óvulo desliza soberanamente trompa abaixo, em direção ao encontro nupcial, os espermatozoides são dizimados aos milhões pela secreção uterina, de tal forma que somente um sobrevivente seja coroado com o triunfo antes da morte (Spielrein, 1912).



A Diferente Formação da Identidade do Homem e da Mulher

Como descrevi em meu livro sobre as sete fases arquetípicas da vida (Byington, 2013), a identidade do menino e da menina se forma de maneira muito diferente a partir do início da terceira fase da vida (2 -12 anos). Até os 2 anos de idade, o menino e a menina se sentem iguais ao pai e à mãe quanto à identidade do gênero. Ao se dar conta e ao começar a ser tratado como menino, por volta dos dois anos de idade, ele percebe que, pelo fato de ser homem, ele não é igual à mãe e a menina percebe também, que por ser mulher, não é igual ao pai. Essa constatação para ela não tem a importância que tem para ele, pois ela não sofre nenhuma interdição e continuará com todas as atividades iguais à mãe no vestir e no brincar. Ela poderá até mesmo vestir o salto alto de sua mãe, brincar de mãezinha, “ter filhinhos” e “amamentá-los”. A ela, nada será proibido na relação com sua mãe e isso é muito diferente do que acontecerá com ele, que não poderá mais vestir-se como a mãe ou desempenhar qualquer atividade tida como feminina, sob pena de ser ridicularizado e chamado pejorativamente de mulherzinha, para dizer o mínimo.

Como essa transformação ocorre num nível verbal, mas ainda também grandemente pré-verbal, é difícil imaginarmos o quanto essa separação abrupta e traumática da identificação com a mãe afetará a função afetiva do menino. No entanto, a grande diferença entre o homem e a mulher, que levou à afirmação de que “homens vêm de Marte” e “mulheres de Vênus”, origina-se nessa fixação. Quanto maior for a dominância patriarcal na cultura e a repressão da função afetiva do menino com a ameaça de homossexualidade, mais difícil será para ele elaborar esse trauma e desenvolver a sua função afetiva. A compensação dessa ruptura com a mãe, que seria naturalmente mitigada e compensada pela relação afetiva com o pai, também é cerceada pela ameaça de homossexualidade, que, em grau maior ou menor, limitou o amadurecimento da função afetiva dele.

Dessa maneira, dos 2 aos 12 anos, resta ao menino privilegiar a agressividade e o arquétipo do herói para grandes lutas e aventuras, em detrimento de seu amadurecimento afetivo. É esse realmente “o caminho de Marte”, que tornará a competitividade, a agressividade e, em último caso, a guerra, uma tendência mais familiar que o carinho e a afetividade social (Byington, 2013).

O que ocorre com a menina no seu amadurecimento emocional é radicalmente diferente. Elas “são de Vênus” e diferentes dos meninos, não porque assim nasceram, mas porque têm a permissão de continuar a simbiose com a mãe após os 2 anos de idade, desempenhando plenamente a função afetiva, sem nenhuma ridicularização ou ameaça de, por isso, se tornarem homossexuais. É comum vermos duas, três e até quatro meninas andando juntas, afetiva e carinhosamente abraçadas, algo impensável para os meninos, ao menos em nossa cultura. Assim, a mulher se expressa verbalmente muito mais do que o homem porque sua afetividade é bem mais livre e estimulada.

A ferida primal da menina pela separação da identificação com o pai não afetará sua espontaneidade afetiva, que será preservada pela simbiose com a mãe. Essa ferida afetará a autoestima da menina e sua confiança na sua inteligência, na sua iniciativa e capacidade de liderança e de mando, quanto mais prevalecer o privilégio masculino na dominância patriarcal. Essa ferida poderá ser compensada pela relação com um pai que admire a sua inteligência e o seu desempenho escolar, mas é agravada pela desqualificação da formação intelectual da mulher na sociedade de dominância patriarcal.

A influência da elaboração da ferida primal pela separação do menino da mãe e da menina do pai terá uma grande consequência a partir da puberdade. Nessa fase, a afetividade é expressa pelos Arquétipos da Anima e do Animus, junto com a maturidade das glândulas sexuais.

Devido à limitação da função afetiva e ao estímulo cultural da sexualidade masculina após a puberdade, o homem tenderá a se relacionar com a mulher privilegiando a sexualidade. Inconsciente dessa limitação do homem, a mulher tenderá a entrar no relacionamento de forma predominantemente afetiva e amorosa e este será um dos importantes panos de fundo para a limitação do amor adulto. Este desequilíbrio será agravado quanto mais a mulher entrar no casamento e na criação dos filhos dependente financeiramente do homem e sem a autoconfiança para o desenvolvimento profissional e sua autonomia.

A limitação afetiva do homem, além de fazê-lo privilegiar a sexualidade, o deixa inseguro afetivamente. Isto frequentemente o leva a tratar a mulher com um autoritarismo que varia do controle moral e financeiro à opressão física e mental, convergindo para o sadismo, o espancamento e até mesmo o homicídio. Este relacionamento opressivo da mulher, junto com o privilégio econômico financeiro das classes dominantes, se apega às forças reacionárias avessas a quaisquer medidas progressistas.

A Busca do Amor na Relação Homem-Mulher e o Paradigma de Alteridade

A integração progressiva da posição dialética do Arquétipo da Alteridade, preconizada pelo Mito do Buda no Oriente e pelo Mito Cristão no Ocidente, chegou nas sociedades ocidentais com as grandes modificações que começaram a abalar significativamente a dominância da organização patriarcal e a desigualdade da relação homem-mulher.

A segunda metade do século XX apresentou o início dessas grandes mudanças nas sociedades ocidentais. Junto com os movimentos em prol dos direitos humanos, o desenvolvimento tecnológico e médico alterou fundamentalmente a relação homem mulher.

A descoberta dos anticoncepcionais e da função do clitóris no orgasmo da mulher; sua profissionalização progressiva; a despatologização e admissão da homossexualidade dentro do desenvolvimento dos direitos humanos; o estímulo ao desenvolvimento da afetividade do homem; a queda do muro de Berlin, com o término da guerra fria; a pacificação relativa dentro da globalização e o desenvolvimento fantástico da comunicação foram decisivos para propiciar o crescimento intenso da liberdade de desenvolvimento do homem e da mulher e da sua busca de um diálogo profundo para o seu conhecimento recíproco e o seu relacionamento amoroso.

Infelizmente, porém, o reacionarismo de muitas culturas dominantemente patriarcais não só não diminuiu como, compensatoriamente, até mesmo aumentou. O ataque traiçoeiro e covarde às Torres Gêmeas de Nova York e a humilhação do mundo islâmico pela guerra mentirosa, covarde e terrivelmente destrutiva do Iraque, acompanhada do impasse fanático no problema israelense, desencadearam o terrorismo moderno. Ele foi acompanhado da intensificação do que há de mais retrógrado em muitas sociedades, centradas na miséria, no atraso social e na opressão conjugal e intelectual da mulher pela exacerbação da organização patriarcal repressiva tradicional nessas sociedades.

O Feminismo

Com o desenvolvimento dos direitos humanos graças à integração social progressiva da posição dialética do Arquétipo da Alteridade, desencadeou-se na cultura ocidental um movimento de afirmação da mulher em todas as dimensões existenciais. No entanto, devido à opressão e deformação sofrida nos milhares de anos de humilhação dentro da organização patriarcal, esse movimento ainda não atingiu a mentalidade propiciadora do desenvolvimento pleno da mulher para conseguir se relacionar amorosamente com o homem em condições de igualdade e liberdade.

Deformado pelas muitas defesas estruturadas nos milênios de opressão, o feminismo seguiu, principalmente na segunda metade do século XX, um caminho de autossuficiência, prepotência e competição com o homem pelo poder, baseado nas mesmas deformações do machismo que, através dos tempos, inviabilizaram a capacidade de amar do homem. Tratou-se, assim, de uma verdadeira enantiodromia (enantio=contrário e dromus=correr), uma corrida para o contrário no relacionamento homem-mulher, que se opôs à opressão patriarcal da mulher dentro do mesmo arquétipo que a oprimiu. Esse movimento reativo inviabilizou a ultrapassagem da organizaçãopatriarcal para alcançar um relacionamento na liberdade e na amorosidade da alteridade.

Nessa competição, atrelada a uma relação de poder, as jovens lançaram-se a uma conduta sexual e social aparentemente livre e moderna, mas cuja insegurança e desregramento caminharam defensiva e sombriamente para o exibicionismo, a promiscuidade sexual compulsiva, a gravidez precoce, as doenças sexualmente transmissíveis e uma profunda desorientação existencial que as afastou da autorrealização profissional e amorosa que tinham certeza de ter conseguido.

Aos poucos, porém, o movimento feminista vem percebendo os descaminhos dessa busca, que, devido às inúmeras atitudes defensivas adotadas, precisam ser elaborados e modificados. Com isso, o movimento feminista vem abordando ultimamente seu grande desafio, que é a realização profissional, com a conquista da independência financeira junto com a manutenção da sua riqueza afetiva no relacionamento com o homem, com os filhos e com o lar, os quais no passado contribuíram para o seu cerceamento, mas que hoje precisam ser integrados na sua autorrealização.

Conclusão

Como já havia percebido Hegel (1899) em sua teoria sobre o espírito da História, a humanidade caminha com progressos e retrocessos em direção à liberdade. Esse é o grande ideal para desenvolvermos a possibilidade da nossa sobrevivência dentro doamor, que necessita que o homem e a mulher atinjam sua abertura e dedicação no seu processo de individuação.

Inúmeros são os entraves históricos constitucionais e psicodinâmicos que necessitamos enfrentar para desenvolver a capacidade de amar, mas a análise desse processo histórico mostra que nossa espécie tem a necessidade de elaborar essa Sombra para que o homem e a mulher se tornem companheiros na busca da plenitude.


** Artigo publicado na Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, nº 32-1, junho de 2014, São Paulo, SP.

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