quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A Sociedade Disciplinar na Configuração Escolar

A SOCIEDADE DISCIPLINAR NA CONFIGURAÇÃO ESCOLAR Carina Cavaletti de Carvalho RESUMO O objetivo deste estudo é apresentar uma reflexão sobre a escola como local de constituição de saberes e poderes. Para esclarecer essas questões e fornecer os elementos para uma análise dessa realidade Michel Foucault se apresenta como a principal referência teórica, possibilitando a compreensão das relações presentes no cotidiano escolar. Nas relações de poder contidas nesse ambiente, o “poder disciplinar” demonstra toda sua eficácia. Palavras-chave: Poder. Disciplina. Escola. INTRODUÇÃO Este artigo visa articular a produção de conhecimento com as relações de poder que circulam na escola. Trata-se de uma reflexão teórica apoiada basicamente nos escritos do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) e sua concepção de sociedade disciplinar, bem como uma investigação da escola como local de constituição de saberes e poderes. Outros autores também serão abordados nesta discussão. Para analisar a forma que as relações de poder circulam no espaço escolar é necessário apontar alguns conceitos estabelecidos por Foucault, e que serão utilizados neste estudo: o poder deve ser analisado como algo que funciona em cadeia, não está localizado aqui ou ali, nem está nas mãos de alguns; o poder não é um bem, mas é algo que existe em rede, e nessa rede todos os indivíduos circulam, sendo que qualquer um pode estar em posição de ser submetido ao poder e também exercê-lo; não se trata de “quem tem o poder”. Para o autor, o poder não é exercido, mas se exerce, não tem um centro, um comando, mas está em toda parte. E, principalmente, o poder se exerce pela disciplina dos corpos no espaço e no tempo. PODER E SABER NA ESCOLA Para o sociólogo Norbet Elias (1897-1990) o poder é um atributo das relações sociais, é um fruto do contato entre os indivíduos e das suas ações a todo instante, sejam elas no campo político, econômico, cognitivo, etc. Dessa forma, Elias não toma o poder como algo que se “põe na bolsa”, ou seja, algo concreto que está nas mãos de um grupo social – relacionado principalmente ao controle de coisas, de objetos e de pessoas. Em Elias, “o conceito de poder deixou de ser uma substância para se transformar numa relação entre duas ou mais pessoas e objetos naturais; assim, o poder é um atributo destas relações que se mantêm num equilíbrio instável de forças” (MEDEIROS, 2005). Deste modo, o poder na teoria de Elias não se resume ao que ocorre entre senhores e servos, dominadores e dominados, mas pode ocorrer entre indivíduos de uma mesma família, entre membros de bairros vizinhos; e pode se mostrar também nas mais variadas situações, como a maneira que os indivíduos se portam à mesa, a maneira de se vestir, e a aceitação (ou não) em atividades cotidianas de lazer, no contexto escolar. Se o poder tem como fonte as relações humanas mais variadas, ele também pode assumir diversas formas. Na linguagem eliasiana, isso quer dizer que há grupos ou indivíduos que “podem reter ou monopolizar aquilo que os outros necessitam, como por exemplo, comida, amor, segurança, conhecimento, etc. Portanto, quanto maior as necessidades desses últimos, maior é a proporção de poder que detêm os primeiros” (ELIAS, 1994 apud MEDEIROS, 2005). Segundo Foucault (1977) as relações de poder estabelecidas no século XX nas instituições - seja na família, na escola, nas prisões ou nos hospitais - foram marcadas pela disciplina, cujo objetivo principal era a produção de “corpos dóceis”, eficazes economicamente e submissos politicamente. Andrade (2007, p.93) aponta que “para atingir este objetivo, a partir do final do século XVIII as sociedades disciplinares começaram a distribuir os indivíduos no espaço por meio de técnicas de enclausuramento e/ou de organizações hierárquicas de lugares específicos. Todas as atividades eram controladas temporalmente”. Isto possibilitava o isolamento do tempo de formação e do período da prática do indivíduo. Assim, a aprendizagem poderia ser normatizada e as forças produtivas seriam compostas a fim de obter um aparelho eficiente. A disciplina, então, utilizava dois dispositivos para fazer valer o seu poder e autoridade: a arte das distribuições e a arte do controle da atividade. Já para Elias, essas técnicas são de controle das emoções, pelas quais, com base em determinado contexto histórico, a manifestação de determinadas emoções foi considerada inoportuna, sinônimo de periculosidade e perturbação. Elias e Foucault são autores que recorrem a procedimentos metodológicos distintos, mesmo porque se colocam questões diferenciadas de análise, mas possuem algumas aproximações, seja na contribuição que trazem para a historiografia, seja na maneira de aproximarem-se do objeto (poder). Foucault (1977) afirma que os hospitais, por exemplo, não se redefiniram baseados em uma técnica médica, mas diante da introdução de técnicas de controle - a disciplinarização do espaço hospitalar -, possibilitando a produção e novas práticas e saberes médicos. Isso foi em razão de que no sistema epistemológico da medicina no século XVIII as intervenções não ocorreram propriamente na doença, mas no meio: ar, água, temperatura, alimentação, etc. Em relação à escola, o autor afirma: Nas escolas do século XVIII os alunos também estavam aglomerados e o professor chamava um deles por alguns minutos, ensinava-lhe algo, mandava-o de volta, chamava outro etc... Um ensino coletivo dado simultaneamente a todos os alunos implica uma distribuição espacial. A disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. (FOUCAULT,1977, p.135) Várias estratégias de controle foram buscadas para acomodar estes alunos: o uso da chamada, as notas, os apontamentos, os horários, ocorrências... Todos são procedimentos disciplinares que circulam nas instituições. Na escola é proibido falar durante a aula, tem que sentar na posição correta para não agredir a coluna, não pode levantar-se da cadeira, é preciso levantar a mão para falar, para dizer que precisa ir ao banheiro. No recreio não deve correr para não cair, é aconselhável não brincar com terra porque suja o uniforme e o material escolar, não se pode beber água o tempo todo, durante as atividades não pode olhar de lado nem conversar com o colega. Esses são exemplos em relação aos estudantes. Os professores, por sua vez, também não podem fazer uma série de coisas como se ausentar da sala de aula, por exemplo. O nome escrito no quadro, o encaminhamento à coordenação, os cinco minutos sem recreio, as observações na caderneta, as notas no boletim... Tudo isso são táticas usadas com freqüência para garantir a “normalidade”. Nas salas de aula de aula, as carteiras geralmente são dispostas em filas, uma atrás da outra; há um espaço na frente reservado para o (a) professor (a), às vezes ainda mais alto que o resto da sala; as janelas são grandes e largas, às vezes com vidros transparentes; há câmeras nos corredores, pátios, em outros espaços como coordenações, secretaria, e até dentro das salas de aulas em algumas escolas. Tudo para proporcionar uma rede de olhares que controlam uns aos outros: um (a) professor (a) que controla toda a classe, uma equipe técnica que controla todos os professores, um (a) diretor (a) que controla toda a escola. A visibilidade geral propicia o poder. Deste modo, esses instrumentos disciplinares organizando os “lugares” e as “fileiras” nas salas de aula criam espaços complexos: para Foucault (1977) são ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. De acordo com Prata (2005) são “espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantindo a obediência dos indivíduos (...)”. Ou seja, o domínio da diversidade impõe uma ordem e a escola, por ser uma instituição disciplinar, atua via esses procedimentos. Andrade (2007, p.95) acrescenta que “as práticas disciplinares agem, portanto, no sentido de facilitar o controle e a predominância relativa de determinados agentes sobre outros no ambiente organizacional”. Outras relações de poder como as chamadas dos professores ou outros funcionários pela supervisão ou direção, as conversas de advertência também são comuns, assim como os instrumentos de punição: assinar termo de compromisso, desconto salarial, demissão. Já com os pais, o poder presente no discurso apresenta todos os registros sobre o estudante e antecipa a reprovação ou sua saída da escola. Todas as atividades que formam a dinâmica cotidiana escolar estão também controladas pelo horário, que é a garantia da qualidade do tempo. Um controle contínuo sob o horário de chegar e de sair, de início e de término. A idéia é controlar para não precisar punir. Na escola, o mecanismo penal do sistema disciplinar são as sanções normatizadoras, aplicadas tanto para os estudantes quantos para os funcionários, ou seja, o normal se estabelece como princípio de coerção e com ele o poder da regulamentação. Para Foucault (1979, p.106) a “disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme a regra. É preciso vigiá-los, durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares”. Neste contexto, o exame é considerado instrumento disciplinar fundamental em qualquer instituição já que “através do exame, a individualidade torna-se um elemento pertinente para o exercício do poder”. Barbosa (2007), em artigo publicado, ressalta que os exames são rituais para controlar, qualificar, classificar e punir. Eles oferecem a visibilidade das diferenciações e sanções e ligam formação do saber com exercício do poder. E ao relacionar com Foucault, a autora afirma: “É um poder exercido sem ser percebido e faz a individualização entrar num campo documentário essencial para a disciplina”. Nos cadernos, nos boletins e nos relatórios dos conselhos de classe está a síntese desse arquivo escrito que descreve, mensura, mede, compara o individual. De acordo com Veiga (2002) “na perspectiva foucaultiana, saber e poder estão intimamente relacionados, na medida em que o exercício do poder é lugar de formação do saber, e também que todo saber constitui relações de poder”. Dessa forma, o hospital não é apenas o lugar de cura, mas também o instrumento de produção, acúmulo e transmissão de saber; por analogia, a escola está na origem da pedagogia; a prisão, da criminologia; o hospício, da psiquiatria. Roberto Machado (1979), na introdução de Microfísica do poder, afirma que a inovação de Foucault, em 1961, pela História da loucura, estaria em estudar os saberes sobre a loucura para estabelecer o momento e as condições de possibilidade do nascimento da psiquiatria. Posteriormente, outras obras suas – Vigiar e punir (1975) e o primeiro volume de História da sexualidade (1976) – amadurecem as questões trazidas em As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969), ou seja, a introdução nas análises históricas da “questão do poder como um instrumento de análise capaz de explicar a produção dos saberes”. Já Andrade (2007, p. 102) considera que “a relação entre poder e saber é de mão dupla: se o poder produz saber, o saber também gera poder”. Nesta perspectiva, a escola como instituição fez e faz parte dessa produção de saberes, uma vez que, o poder disciplinar conquista um lugar privilegiado nos discursos e nas ações, sendo a principal personagem das relações que compõe o contexto escolar. E ainda: o educar significa ensinar, qualificar, esclarecer, mas também, disciplinar, vigiar, punir. CONSIDERAÇÕES FINAIS A contribuição dos estudos de Foucault está em fazer compreender o papel disciplinar que a escola moderna desempenhou na constituição do sujeito, da sociedade, do Estado. Já que o poder não é apenas dominação, mas também produção - e é a partir dessas relações que a realidade se configura. A grande lição que Elias deixa é buscar ver o mundo sob outra ótica e tentar identificar as relações de poder como algo presente no dia-a-dia das pessoas. Poder não se resume à luta entre grandes nações; e excluídos não são apenas os países e continentes “sub-desenvolvidos”. E, na maioria das vezes, não são os indivíduos que escolhem em qual lado irão ficar. Muito menos existe um lado “bom” e outro “ruim”. Tudo faz parte de um processo. Finalmente, algumas questões devem ser levantadas ao considerar a sociedade disciplinar na configuração escolar: este poder disciplinar também não gera indisciplina? Não seria necessária a mudança deste modelo de disciplina vigente? De qualquer maneira, ao considerar a disciplina como uma técnica que fabrica indivíduos úteis e que está na existência do ser humano é correto enfatizar, então, que esta disciplina é necessária para a sociedade, já que é também produtiva. Bibliografia REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, M. S., Dinâmica institucional: entre o poder e o saber. In: NETO, J.C. S. e ANDRADE, M. S. (org.). Análise institucional. Diferentes perspectivas da aprendizagem. São Paulo: editora Expressão e Arte, 2007. BARBOSA, R. C., A disciplina e as táticas no universo escolar segundo Michel Foucault: a anatomia política do detalhe. (artigo publicado) 2007. Disponível em: Acesso em: 13 jun 2008. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. _____________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. MEDEIROS, P. L G. de., Aspectos do poder e do cotidiano em Norbert Elias (artigo publicado). 2005. Disponível em: www.scielo.br Acesso em: 02 dez 2008. ELIAS, N., A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. PRATA, M. R. S., A produção da subjetividade e as relações de poder na escola: uma reflexão sobre a sociedade disciplinar na configuração da social da atualidade. (artigo publicado). 2005. Disponível em: Acesso em: 06 jun 2008. VEIGA, C. G., A escolarização como projeto de civilização. (artigo publicado). 2002. Disponível em: Acesso em: 13 jun 2008. CARINA CAVALETTI DE CARVALHO PEDROSO Mestre em Psicologia Educacional (UNIFIEO), psicopedagoga e professora de História (USP). carina_cavalettic@yahoo.com.br Publicado em 10/01/2012 11:30:00 Currículo(s) do(s) autor(es) Carina Cavaletti de Carvalho - (clique no nome para enviar um e-mail ao autor) - Historiadora graduada pela Universidade de São Paulo, pós-graduada em Psicopedagogia na Universidade Mackenzie, professora de História na rede pública do Estado de São Paulo.

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