terça-feira, 5 de novembro de 2013

Violência e Identidade na escola

VIOLÊNCIA E IDENTIDADE NA ESCOLA Antônio José Tavares Lima Sumário Resumo: O presente artigo foi produzido a partir da minha dissertação de mestrado desenvolvida na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) entre os anos de 2009 e 2011. A pesquisa que possibilitou a realização deste projeto foi um estudo de caso etnográfico sobre violência realizado em uma escola da rede pública de Salvador. A proliferação de violências em contexto escolar é situada a partir de um duplo movimento, que considera a dinâmica local e o contexto maior do qual a instituição é parte. Conclui-se que o uso das violências no interior da escola constituía uma prática amplamente valorizada e aceita pela grande maioria dos alunos. Um processo que não representava apenas uma reação contra a instituição, ou produto dos conflitos entre os alunos, mas também uma importante referência identitária. Palavras Chave: Violências, escola, identidade. Abstract: the current article is a written production from the master thesis developed at the “Universidade do Estado da Bahia (UNEB)” between 2009 and 2011. The research that enabled the accomplishment of this project was an ethnographic case study on violence held in a public school in Salvador. The proliferation of violence in school is located from a double movement, in which considers the local dynamics and the context larger than the institution is part of. It is concluded that the use of violence within the school constituted a practice widely appreciated and accepted by the vast majority of students. A process that not only represented a reaction against the institution, or product of conflicts between students, but also an important identity reference. Palavras Chave: Violences, school, identity. INTRODUÇÃO Os episódios considerados violentos são narrados cotidianamente nos meios de comunicação, anunciando histórias de homicídios, assaltos, agressões, incêndios, guerra entre polícia e traficantes, grupos de extermínio, homofobia, racismo, violência contra a mulher, contra crianças, violência nas escolas, dentre outros. Estas narrativas aterrorizam a população, fazendo parecer que a violência é um fenômeno novo ou estaria piorando, o que não é verdade. Embora a criminalidade esteja aumentando em todo mundo ocidental desde a década de 80 do século passado, as violências constituem possibilidades antigas, que sempre estiveram presentes nas formas dos homens resolverem seus conflitos (ADORNO, 2002). O “processo civilizador”, que envolve a pacificação dos costumes e a tentativa de impedir os indivíduos de usarem a força física entre si, não constitui um fenômeno recente. Remonta ao surgimento do Estado moderno, no contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, ocorrido na Europa ocidental entre os séculos XV e XVIII (ELIAS, 1993). Elias lembra que em uma sociedade onde não existe um monopólio central forte e estável (Estado), existe maior espaço para manifestação livre das emoções e grau mais alto de ameaças físicas. Na Grécia antiga, por exemplo, com a fragmentação do poder entre as cidades estado não havia maiores esforços no sentido de conter a violência. Os próprios cidadãos eram responsáveis pela sua segurança, ou seja, não existia um Estado forte que assegurasse um padrão de controle. Isso se refletia na prática dos esportes de combate, ainda que na sua forma rudimentar, em que as regras eram flexíveis e incontroladas. O público gostava das situações que estimulavam a alegria e a liberdade de competir para vencer o adversário, destruindo-o fisicamente e o prazer de infligir dor física e moral ao vencido, que não raro, morria em combate (ELIAS & DUNNING, 1985). Com o surgimento do Estado Moderno, esta ameaça que os indivíduos representavam uns para os outros, ganha outra dimensão. O Estado se torna o detentor do monopólio do uso legítimo da força física dentro de determinado território, sendo que o seu uso privado passa a ser combatido. Contudo, este processo não se revelou condição suficiente para determinar a pacificação dos costumes e hábitos enraizados na sociedade. Isto explica porque foi necessário a criação de um direito positivo, fruto da vontade racional dos homens, voltado para restringir e regular o uso dessa força e para mediar os conflitos dos indivíduos entre si (WEBER, 1991). Nos países onde os ideais de democracia e de igualdade foram validados, a crença na justiça possibilitou ao Estado desempenhar seu papel de mediador social. Nestes contextos a violência física, em grande medida, foi controlada, embora nunca tenha desaparecido completamente. Em países como o Brasil, onde são frágeis os ideais de democracia que deram suporte ao projeto de modernização da sociedade, não se consolidou uma cultura de respeito ás Leis. O processo de pacificação dos costumes nunca se efetivou e as violências continuam sendo amplamente valorizadas e praticadas como um importante instrumento na regulação das relações sociais (ADORNO, 2002; DA MATA, 1982; KANT DE LIMA, 1999). A escola enquanto instituição social se insere no contexto maior do qual é parte e reproduz, em grande medida, seus modelos e padrões. Logo, se a violência está na sociedade e na cultura, deve aparecer nas escolas. A instituição escolar, contudo, não é entendida aqui como agência meramente reprodutora das estruturas sociais, mas a partir de um duplo movimento, que considera a dimensão instituída das normas e regras, que tentam unificar e demarcar a ação dos seus sujeitos; e a instituinte do cotidiano das interações que aí se inscrevem (EZPELETA & ROCKWELL, 1986). Logo, as violências que se proliferam no seu interior não são pensadas como mero reflexos das violências extra muros, mas também como produto da dinâmica local. Pretende-se, assim, reconhecer o papel ativo dos atores, estudantes, professores, coordenadores, diretores e outros funcionários, no processo de construção das histórias imbicadas no mundo da escola. O presente trabalho foi escrito a partir da minha dissertação de mestrado desenvolvida na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) entre os anos de 2009 e 2011, cujo tema foi violência em contexto escolar. A pesquisa que possibilitou a realização deste trabalho foi um estudo de caso etnográfico, realizado em uma escola da rede pública de Salvador. O objetivo de uma pesquisa de inspiração etnográfica é conhecer determinado fenômeno a partir do ponto de vista dos atores envolvidos na sua produção. Como diria Geertz (1989), conhecer o “ponto de vista do nativo”. Dentro desta visada, as violências são interpretadas a partir de uma perspectiva hermenêutica, ou seja, como fenômenos significantes, que se estabelecem a partir das interações constituídas no interior da escola, embora sem perder a conexão com o contexto maior do qual é parte. A palavra violência tem sua origem no latim, violentia, que reporta a vis, que significa força física, vigor. Para Zaluar (1999), esta força torna-se violência quando ultrapassa determinados limites, ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações. A percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento causado), que vai caracterizar um ato como violento ou não, sempre varia de acordo com o contexto histórico e cultural. A autora conclui, em consonância com diferentes autores (ADORNO, 2002; DA MATA, 1982; VELHO 2004; KANT DE LIMA, 1999), que a palavra violência representa um tipo de relação social marcada pela negação do outro devido ao “[...] pouco espaço existente para o aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda, enclausurado que fica na exibição da força física pelo seu oponente ou esmagado pela arbitrariedade dos poderosos que se negam ao diálogo” (ZALUAR, 1999, p. 8). Importante lembrar que a própria concepção de outro situa a diferença como fundamento da vida social. Segundo Velho (2004) a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito. Desta forma, o convívio em sociedade não se constitui a partir de processos homogêneos, mas sempre marcado pelo dissenso, sendo que as divergências podem ser resolvidas através de negociações, como também através de imposições. Os conflitos, portanto, são inerentes ao convívio coletivo e as violências constituem possibilidades na forma das pessoas resolverem suas diferenças. Pensar a violência em contexto escolar pressupõe, portanto, considerar os mecanismos de controle institucional, as estratégias de administração dos conflitos existentes e sua legitimidade entre a comunidade local. 1 OS CAMINHOS DA PESQUISA Fundada em 1999, a Escola Aquário (nome fictício) localizava-se em um bairro de Salvador marcado por contrastes sociais, onde a miséria e a riqueza moravam ao lado. A instituição oferecia ensino fundamental e educação de jovens e adultos. Ocupava uma área de 14.000 metros quadrados, sendo que 7.000 metros eram de área construída. O prédio possuía dois pavimentos com 14 salas de aula (sete em cada andar). A escola contava com cerca de l.400 alunos, sendo que 700 pela manhã, 500 pela tarde e 200 pela noite. O quadro de profissionais da época era formado por uma diretora, três vices (uma para cada turno), seis coordenadoras (duas para cada turno), uma psicopedagoga, oitenta professores, sendo que 90% possuem especialização e 0,5% mestrado. Contava ainda com um porteiro, seis vigilantes, quatro auxiliares de disciplina, quatro merendeiras, quatro cozinheiras, seis auxiliares de limpeza e três secretárias. Os trabalhos de campo se iniciaram em agosto de 2009, onde encontrei um ambiente multifacetado, atravessado por diferentes vozes e atitudes. Neste contexto, tive de aprender a conhecer os códigos locais e administrar diferentes conflitos que foram surgindo ao longo dos trabalhos. Participar do cotidiano de uma instituição envolve, necessariamente, contato direto com as tensões e disputas locais. Tive que transitar através destas problemáticas e, aos poucos, convencer os atores envolvidos que não pretendia tomar partido nos conflitos existentes. Apesar destas dificuldades, conquistei a confiança de um grande número de profissionais e alunos da casa, consolidando um lugar que me conferiu grande liberdade de trânsito pela instituição. Para a construção dos dados foi utilizada à técnica da observação participante e de conversas informais (individuais e em grupos). Inicialmente cheguei a usar a entrevista semiestruturada, mas percebi que as falas estavam sendo muito racionalizadas. Optei, então, por conversas informais, que se estabeleceram nas interações tecidas no cotidiano institucional. Esta metodologia permite que o sujeito seja mais espontâneo nas suas falas, expressando, desta maneira, aquilo que mais se aproxima do seu olhar, sem muitos freios ou disfarces. Não escolhi determinados informantes em especial, conversei com todos que se mostraram interessados em contribuir com a pesquisa. Tive contato com toda equipe de gestores (diretora, vice e coordenadores) e cerca de trinta professores, sendo que aprofundei a conversa apenas com doze, posto que com os demais foram contatos mais rápidos, em reuniões ou nos pátios. Conversei também com a psicopedagoga, a estagiária de psicologia, duas estagiárias de Educação Física, dois vigilantes, duas serventes e a auxiliar de disciplina. Entre os alunos tive contato com quarenta e quatro, sendo que conversei de forma mais profunda com vinte e três (onze meninas e doze meninos). Todos eram alunos do primeiro e o nono anos do ensino fundamental. Tive a oportunidade de conversar também com oito mães, dois padrastos de alunos e dois comerciantes da região. Com o intuito de preservar o anonimato dos informantes, utilizei para a instituição pesquisada o nome de Escola Aquário. No que tange ao registro dos dados, o caminho também não foi muito rígido. O gravador provocou grande desconfiança entre os professores, que frequentemente pediam para eu desligar o aparelho. O estranhamento de ter sua fala gravada, entre alguns, era tamanho, que até do meu celular havia desconfianças. Quando, por algum motivo, eu o colocava em local visível, era comum alguém me perguntar: “está gravando?”. Dentro desta perspectiva, adotei o diário de campo, que, por sua vez, gerou desconfiança entre os alunos, que o associavam a um instrumento de opressão dos professores. Era comum algum aluno se aproximar de mim e perguntar se eu estava anotando o nome de alguém que sofreria algum tipo de punição. Um aluno do sexto ano chegou a perguntar se eu estava anotando o nome daqueles que seriam “expulsos” no final do ano. Resolvi então, usar estes instrumentos com reservas, apenas quando percebesse que não causaria constrangimentos. Entre os alunos o gravador foi mais aceito, tornando-se, inclusive, objeto de curiosidade e desejo. Entre os professores, o diário de campo foi melhor assimilado. Nas situações mais tensivas, que envolviam algum tipo de conflito, decidi não usar instrumentos. Nestes casos fazia o registro após a interação. O turno escolhido para realizar a pesquisa foi o matutino, por constar com todo o ensino fundamental e aglutinar maior número de alunos por turno. A utilização de apenas um turno para o estudo deveu-se a imperativos metodológicos, considerando-se a natureza da pesquisa e o fator tempo. 2 AS NARRATIVAS SOBRE AS VIOLÊNCIAS O percurso etnográfico deste trabalho possibilitou identificar três padrões básicos de narrativas sobre as violências. O primeiro, que correspondia ao discurso dominante, situava a violência como um problema grave, mas que em nada se relacionava com a instituição, decorrendo dos contextos de referência dos alunos, principalmente do ambiente familiar, percebido como “desestruturado”. O segundo padrão, que representava o discurso oficial, muito utilizado pelos gestores nos meus primeiros contatos com a instituição, anunciava que as violências existentes eram casos sem importância, que não produziam maiores repercussões na escola. O terceiro padrão, específico de um grupo pequeno de professores e funcionários que adotavam uma postura crítica em relação à instituição, percebia as violências como um problema grave e as relacionavam a três questões: insatisfação dos alunos com a instituição; às relações interpessoais corroídas, marcadas pelo autoritarismo e pela fragilidade dos vínculos; e à violência perpetrada nos ambientes de referências dos alunos. Entre os professores, gestores e funcionários entrevistados as principais concepções de violência enfatizadas foram à dimensão física (socos, pontapés, homicídios), a violência verbal (xingamentos, humilhações), a intimidação (ameaças), a violência patrimonial (depredação da escola, furtos), e o consumo e tráfico de drogas. Poucos falaram sobre violência institucional ou sobre a violência estrutural (desigualdade social). Todos os alunos entrevistados acreditavam existir violências na escola, embora a minoria se sentisse incomodado com este quadro. Em relação às concepções de violência, eles faziam uma associação imediata entre a palavra violência e qualquer tipo de agressão física ou ato criminoso, como tráfico de drogas ou assaltos. A violência verbal, patrimonial e as intimidações ocupavam um lugar secundário. A maioria dos alunos relacionava a violência dentro da escola com a insatisfação generalizada frente à mesma, seja devido à falta de opções de lazer ou devido à forma que são tratados pelos educadores, considerados “sem paciência” e “estúpidos”. Outro argumento muito frequente associava violência ao uso de drogas ou envolvimento com marginais, poucos relacionavam violência com o ambiente familiar. Um aspecto relevante da percepção dos gestores e professores se relacionava com as causas das violências. No geral as violências eram relacionadas com a criminalidade ou com o ambiente familiar dos alunos. Inexistia uma compreensão crítica das violências como um componente presente na estrutura social em função da desigualdade e injustiça gritantes. As violências eram percebidas como fenômenos pontuais, relacionados a indivíduos ou determinados grupos. Esta percepção alimentava a crença de que nada poderia ser feito pelos educadores para enfrentarem o fenômeno. O discurso dominante, ao reduzir o problema para o âmbito familiar ou criminal, postulava que apenas as famílias ou a polícia, poderiam fazer algo para mudar este quadro. A crença geral focava o problema no ambiente familiar, concebido como degradado, onde predominariam cenas de violência ou de omissão. Este ambiente favoreceria a aproximação com o mundo do crime e do consumo de substâncias psicoativas, apontados como causadores da violência. Esta compreensão se fundamentava em uma percepção generalizante dos contextos de referência dos alunos. Embora existissem casos que se inscreviam bem neste modelo, contudo, uma parte expressiva dos alunos entrevistados trazia outras referências. Eram filhos de pais trabalhadores, sem histórico de envolvimento com marginais ou grupos de rua. Suas famílias eram pobres, porém não revelavam um ambiente de abandono, ou dominado por agressões físicas, intimidações ou humilhações. Paralelamente, existiam narrativas de funcionários e professores que apontam para outra direção. Um funcionário me falou de alunos que eram pacíficos ao entrarem na escola, mas, pouco tempo depois, tornavam-se “violentos”. Outro informante me relatou sobre mães que se deslocavam até a escola com o objetivo de observar seus filhos. Segundo sua fala, as mães não conseguiam acreditar nas queixas da instituição, posto que os filhos, em casa, não possuíam históricos de violências. Um professor do fundamental 2 narrou que os alunos calouros, “rapidamente ficavam iguais aos piores”. Ele acreditava que os alunos não faziam isto apenas para se defender dos outros, posto que também se tornavam agressores. Em sua opinião, a grande maioria dos alunos que entra na Escola Aquário, em algum momento, aprende a bater e passa a agredir os colegas por qualquer “besteira”. Estas falas apontam para uma dimensão local do fenômeno, que se encontra impregnada de sentidos produzidos dentro dos muros da escola a partir das redes de relações estabelecidas. 2.1 DINÂMICA DAS VIOLÊNCIAS NA ESCOLA O uso de violências na Escola Aquário era uma pratica constate, sendo raros os momentos de paz. Seja na modalidade simbólica ou física, cenas de violências se inscreviam exaustivamente nos espaços de relacionamentos da instituição, atravessando as salas dos gestores, salas de aula, cantina, pátios e corredores. Dentro desta perspectiva, foram mapeados cinco contextos básicos, interligados e interdependentes, que se destacam na produção do fenômeno. No primeiro contexto tratava-se da violência institucional, que figurava nos padrões de dominação e nos mecanismos de controle social instituídos. No cotidiano da Escola Aquário inexistiam maiores preocupações com a legitimação das regras de convívio, que eram impostas de forma unilateral, sem considerar as vozes dos estudantes. Não existia uma dominação racional legal, pode-se ler em Weber (1991), baseada em um pacto social, mas relações tradicionais sem legitimidade. Destaca-se aqui a incapacidade dos gestores em administrarem conflitos e o uso exaustivo da lógica punitiva, que constituía a principal estratégia utilizada para impor ordem. Segundo Weber (1978) o poder se torna legítimo quando se estabelece a obediência voluntária. Em tal contexto a figura de poder é percebida como dotada de autoridade e a ordem é cumprida por adesão, diferente da obediência por coerção, que funciona através do medo das possíveis consequências do ato transgressor. Os gestores da Escola Aquário não possuíam essa compreensão e acreditavam que o melhor remédio para desobediências eram as punições. No segundo contexto, que resultava do primeiro, existia uma reação contra a instituição, que se expressava nas violências dirigidas às pessoas ou aos objetos que representavam a escola – depredações, furtos, xingamentos e ameaças. Estes conflitos refletiam a insatisfação generalizada dos estudantes com os modelos de relacionamentos estabelecidos, particularmente o modelo de autoridade. O resultado era a constante depredação do patrimônio escolar, que figurava em portas destruídas, paredes pinchadas, vasos sanitários danificados, equipamentos furtados, além das desobediências generalizadas nas salas de aula, gerando um ambiente insalubre para a aprendizagem. Segundo a diretora, a estatística de reprovação anual era da ordem dos 25%. A instituição não se implicava com estas problemáticas e tanto os gestores, funcionários e os professores, acreditavam que os mesmos resultavam da falta de educação doméstica dos alunos. No terceiro contexto existia algum tipo de conflito, que havia sido resolvido diretamente pelos alunos através de agressões físicas ou verbais, sem qualquer tipo de mediação. As regras da instituição, assim como a presença de educadores, não eram consideradas meios legítimos para mediar às relações estabelecidas. No geral os educadores eram procurados quando alguém era agredido e desejava se vingar do agressor. Estes conflitos aconteciam frequentemente por motivos fúteis, e revelavam a descrença total dos alunos no diálogo e na mediação, que não eram estimulados pela escola. Neves (2009), seguindo os passos de Simmel, lembra que o convívio, enquanto forma social pode propiciar momentos de construções e destruições, quer sob as instituições, estruturas, arranjos, processos, relações e interações sociais. Nesta perspectiva, os conflitos sociais são destacados como socialmente importantes e não um mal a ser extirpado. Segundo a autora, a escola pública não sabe como mediá-los e esta incapacidade constitui um fator decisivo para a proliferação de violências no contexto escolar. Mediação entendida como uma forma conciliatória de resolução de conflitos, onde os próprios envolvidos chegam a uma solução para suas demandas. O papel do mediador é de facilitar o diálogo, proporcionando condições favoráveis para um consenso. No quarto contexto as violências eram experimentadas como uma grande diversão entre os alunos. Elias e Dunning (1985) no livro, “A busca da excitação”, chamam a atenção, como o próprio título sugere, para as relações entre lazer e as fortes emoções presentes nos jogos de combate. Os autores lembram que, nas sociedades modernas, as rotinas do trabalho criam um imperativo de autocontrole, que produz um mundo monótono e repetitivo. Neste contexto, a atividade recreativa, em suas diferentes modulações, constitui o principal espaço socialmente aceito para liberar fortes emoções. Apesar da Escola Aquário possuir duas quadras, uma poliesportiva e outra de ginástica olímpica, além de equipamentos de jogos de salão, um auditório e uma sala de vídeo, durante os horários livres não oferecia qualquer atividade recreativa ou lúdica para os alunos, que ficavam espalhados nos pátios e corredores. As constantes cenas de ataques que se alastravam, pareciam representar, em grande medida, a principal alternativa construída pelos alunos para se divertirem. Por fim, existia uma questão que parecia ser central: a identitária. Esta dimensão lançava luz sobre uma famosa definição amplamente utilizada entre os alunos: “bate para mostrar quem é melhor”. Neste contexto, o uso da força física nem sempre se relacionava a algum tipo de conflito, representando uma importante referência para a afirmação de cada um nas disputas locais. Em uma sociedade tradicional e hierarquizada como foi o Brasil até meados do século XX, a identidade cultural era uma construção muito mais imposta de fora para dentro, a partir do lugar que o sujeito ocupava na trama social e possuía um caráter relativamente definitivo, com poucas chances de mudanças. Questões como nacionalidade, raça, sexo e religião eram as principais referências. Nos cenários atuais, a crescente valorização do individualismo enfraqueceu o peso do mundo tradicional, invertendo o processo de construção identitária, que se torna mais flexível e negociado, contando muito a escolha pessoal (BAUMAN, 2005, GIDDENS, 2002, VELHO, 2008). Assim o sujeito pode transitar mais pelo espaço social, mudando, por exemplo, de religião, de sexo, ou mesmo etnia, a partir dos seus próprios critérios subjetivos de identificação. Este processo enfraqueceu os vínculos de pertencimento, deixando o sujeito, ao mesmo tempo mais “livre” para ser quem ele “quiser”, e perdido em meio a tantas possibilidades. Segundo Giddens (2002) isto teria favorecido a formação de identidades mais flutuantes e locais, como as gangs de rua. A violência pode figurar, nestes contextos, como importante referência identitária, inspirando ações radicais contra determinados grupos ou sujeitos considerados diferentes (PINTO, 2004). Tudo indica que existe algo semelhante se configurando no cotidiano da escola pesquisada, tornando a violência física um importante referência para estes jovens. Bater, seja em contexto de “diversão” ou de conflito, constituía uma prática dominante entre os alunos. Existia uma espécie de ritual, que definia o lugar de cada um nas disputas locais. Ritual entendido aqui como: “[...] as ações simbólicas teatralizadas através do corpo/gestos e fala/linguagem, que configuram um modo de significar e tecer o cotidiano escolar, formando a espessura da sua cultura” (OLIVEIRA, 1998, P. 71). Esta lógica, talvez, explique, em parte, porque as lutas, mesmo quando envolviam conflitos, raramente produziam níveis extremos de danos físicos. O objetivo destas violências, tudo leva a crer, não visava exatamente destruir o adversário, mas marcar um lugar de poder. Este cenário evidenciava o fracasso dos modelos de reconhecimento e valorização instituídos pela escola, anunciando muito mais do que uma perda de autoridade, uma perda de sentido. Um importante trabalho nesta direção foi realizado por Araújo (2000) em uma escola pública localizada na periferia de Belo Horizonte. A autora salienta que as violências observadas entre os alunos não se tratavam necessariamente de uma reação à instituição escolar, mas de atos que serviam para demarcar espaços de poder nas redes de relações tecidas entre eles. Seriam jogos para a afirmação de suas identidades. Em estudo de Vellasco (2004) realizado na comarca do Rio das Mortes em Minas Gerais do século XIX, a violência física figurava como um componente cultural amplamente aceito e valorizado no contexto das relações sociais. Homens e mulheres – e sempre mais os primeiros – em todos os estratos sociais, tornavam-se violentos, ou melhor, recorriam à violência física, como forma corriqueira de solução dos problemas, de enfrentamento de conflitos, como defesa do que julgassem seus direitos e, enfim, na afirmação de sua posição e na defesa de seus valores, tais como honra, valentia e coragem, estes outros nomes da dignidade (VELLASCO, 2004, p.6). Segundo o autor a violência não podia ser explicada apenas como resultado derivado das condições de marginalização e escassez. “Era parte constitutiva e indissociável da forma como o mundo era percebido e aceito como tal” (p. 6). Esta é uma questão central. O uso das violências na Escola Aquário, particularmente da violência física, não se restringia a determinados grupos em especial, mas constituía uma prática amplamente valorizada e aceita pela grande maioria dos alunos, independente do gênero, idade ou cor da pele. Um processo que, embora se relacionasse com o contexto escolar marcado por um clima de insatisfações, possui certa autonomia das problemáticas locais. Dito de outra forma, as violências não constituíam mera reação contra a instituição, ou produto dos conflitos entre os alunos, mas assumiam uma lógica própria. Deixavam, assim, de ser um meio de se conseguir algum fim, para se tornar um vetor produtor de cultura e de regulação das relações locais. Um contexto que lembra as observações de Machado da Silva (2004) quando analisou a violência urbana no Rio de Janeiro. O autor destaca a violência não mais como mera reação a uma ordem estabelecida ou como “desvio” do sistema, mas como um novo padrão de sociabilidade dotado de funcionamento autônomo, endógeno. Esse padrão, batizado de “sociabilidade violenta”, se relaciona com a um tipo de individualismo marcado pelo rompimento radical com a alteridade, reduzindo o outro à condição de objeto. Embora este modelo de sociabilidade seja mais observado em áreas como nas periferias de grandes cidades, faz parte do tecido social, atingindo todos os grupos e classes sociais. Isto explicaria, em parte, o crescimento da violência fatal no Brasil nos últimos 30 anos, nos colocando com estatísticas que superam países em estado de guerra - 49.932 homicídios em 2010 (MAPA DAS VIOLÊNCIAS, 2013). Nestes cenários não existem espaços para intermediários, nem mediações da lei, dos costumes ou da moralidade, mas o encontro cara a cara, onde a força física determina quem é quem na dinâmica das relações sociais. CONSIDERAÇÕES FINAIS O ensino público brasileiro atravessa um momento crítico, reunindo indicadores de fracasso e evasão que o coloca entre os países mais atrasados do mundo. Esse quadro reflete um contexto social onde a educação não é prioridade. Um dos resultados diretos desta realidade é produzir jovens sem futuro, candidatos potenciais ao mundo do crime. Um futuro que já é presente se considerados os números da violência fatal no Brasil. Segundo Mapa das Violências (2011), em um levantamento realizado junto a 100 países, o Brasil ocupa o sexto lugar no ranking no que tange a homicídios de jovens (entre 15 e 24 anos). Mudar esse quadro envolve políticas públicas que efetivamente priorizem a educação, gerando meios necessários para que a escola possa se transformar em um ambiente saudável e sustentável. As questões observadas neste estudo apontam para a necessidade premente de oferecer suporte teórico e metodológico para as escolas desenvolverem estratégias de enfrentamento das violências no seu interior. No caso específico da Escola Aquário, predomina, entre os gestores, a crença em modelos de autoridade e de administração de conflitos equivocados e ineficientes, que alimentam um ciclo vicioso: desobediência – punição – desobediência. Educar neste contexto torna-se uma tarefa inviável, exigindo mudanças de estratégias. Um importante passo para transformar esta realidade consiste em substituir a lógica punitiva pela conciliatória e instituir mecanismos mediadores legítimos, que se tornem opções válidas na forma dos conflitos serem resolvidos. Pacificar costume dificilmente se consegue de forma violenta, através de imposições e castigos. O que não significa afirmar que seja desnecessário desenvolver dispositivos de controle e de coerção efetivos, mas focar nos ideais de democracia e de justiça os principais meios para enfretamento das violências. O que implica, necessariamente, na instituição desenvolver meios para possibilitar que as vozes dos alunos também sejam consideradas e respeitadas. As rotinas, os conteúdos das aulas e as regras de convívio precisam ser negociados e não simplesmente impostos. As ofertas da escola precisam fazer sentido dentro do universo cultural dos alunos. Desta forma será possível construir outros padrões de sociabilidade e de referências simbólicas para suas identidades. Um percurso repleto de incertezas, posto que se choca com padrões culturais altamente disseminados na sociedade, que envolvem modelos de dominação antidemocráticos. Particularmente as escolas, que sempre foram instituições intolerantes, que nunca precisaram negociar com seus alunos. Encontram-se agora diante de um desafio histórico e inevitável, posto que uma escola que não consegue desempenhar o papel de mediadora das relações estabelecidas no seu interior se transforma em um clube perverso, onde a violência e a criminalidade encontram o ambiente perfeito para se proliferar. Bibliografia ADORNO, Sérgio. Exclusão socioeconômica e violência urbana. Sociologias, n. 8: Porto Alegre, July/Dec. 2002. ARAÚJO, Carla. As marcas da violência na constituição da identidade de jovens da periferia. Educação e Pesquisa, Revista da Faculdade de Educação da USP, São Paulo, v.27, p.141-160, n.º 1, jan./jun. 2001. AQUINO, Júlio Groppa. Confrontos na sala de aula: uma leitura institucional da relação professor aluno. São Paulo: Summus, 2006. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2005. DA MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. 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Outras obras de Antônio José Tavares Lima Violências escolares Cultura escolar e (des)encontro com a diversidade Encontros e desencantos na escola e na família Encontros e desencantos na escola e na família Infância, resiliência e escravidão negra no contexto Brasileiro Share on facebook Share on twitter Share on email Share on print More Sharing Services 1 Busca Farmácia Online Produtos Para Emagrecer Suplementos Alimentares [ Página Inicial | Voltar ] © 1998 - 2013 Psicopedagogia On Line ™ Tel/Fax.: 11-5054-1559 Comentários: comentarios@psicopedagogia.com.br Direitos Autorais Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Share on facebook Share on twitter Share on email Share on print More Sharing Services Facebook

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